quinta-feira, 1 de maio de 2008

O valor do desconhecido



Pessoas anônimas, desconhecidas e esquecidas são a matéria prima para as comoventes crônicas/reportagens da jornalista Eliane Brum em “A vida que ninguém vê”


Eliane Brum em seu livro “A vida que ninguém vê”, (Arquipélago, 2006) traz para o público a essência que todo repórter deveria ter em sua profissão: a busca por personagens da rua. Isso significa que o repórter não deve se acomodar às paredes da redação e à pesquisa de matérias na Internet e sim voltar às raízes do jornalismo e sair para a rua na busca de suas personagens.
Publicada durante o ano de 1999 no jornal gaúcho Zero Hora, a coluna A vida que ninguém vê foi uma proposta feita à Eliane por Marcelo Rech, com o objetivo de mostrar ao público as vidas anônimas esquecidas pela grande imprensa. Eliane com um gosto nato por ouvir e contar histórias, aceitou o desafio e semanalmente trazia ao público riograndense a história de vida de pessoas esquecidas, mas que tinham muito a dizer.
Tornou-se inesquecível a saga de Antônio, um excluído da sociedade, vítima da saúde pública que em uma mesma semana enterrou um filho e a esposa, tendo ainda dois rebentos internados. Também inesquecível o sonho de Adaíl, o maleiro do aeroporto de Porto Alegre que desejava muito voar e que graças à matéria de Brum teve seu pedido atendido pela TAM, que o levou até Aparecida onde devia pagar uma promessa . Histórias como a do cativante colecionador das almas sobradas, um senhor que recolhia nas ruas “vidas jogadas fora” e dava novo valor ao que a sociedade considerava lixo, ou ainda o conde decaído, que nos mostrou como pessoas imortalizadas pela história podem cair no triste esquecimento.
Eliane Brum em uma coleção de crônicas-reportagem, revela ao leitor a história do pobre, do deficiente, do louco, do idoso, do excluído. Com um tom literário bastante aguçado que muitas vezes beira o melodrama, A vida que ninguém vê é um alerta para o jornalista e para o público em geral que não vê as mazelas sociais como deveria. O livro tenta demistificar determinados tipos de personagens enxergadas por todos com preconceito, como o mendigo, o pedinte de pernas atrofiadas, o menino favelado paraplégico que luta diariamente para descer e subir o morro onde mora, a mulher negra e deficiente que sonhava em ser professora mesmo com todos os impedimentos, a senhora analfabeta que desde criança sonhava estudar e a divertida Frida com seu amor platônico por um vereador da cidade.
As personagens mostradas pela autora são apenas exemplos, mas levam o leitor a pensar, pois cada um de nós já conheceu pelo menos um exemplar de cada uma dessas personalidades anônimas. Quem não irá lembrar da pequena Camila, pedinte dos faróis gaúchos que morreu na luta pela liberdade, ao dizer a própria Eliane que nós conhecemos e vemos todos os dias muitas Camilas sem ao menos nos darmos conta delas.
As crônicas de Eliane revelam que essas pessoas consideradas sem importância, também possuem uma história de vida e que desejam acima de tudo o respeito de todos que os vêem com desconfiança e a partir daí, poderem ter um final feliz como o de Israel, um anônimo esquecido e miserável que encontrou na bondade e no brilho dos olhos de uma professora, um motivo para viver: a educação.
O livro, reunião de diversas matérias publicadas na coluna do Zero Hora termina com uma história que de alguma forma resume as demais. Trata-se de “O Álbum”, que conta como uma vida inteira pode ser jogada fora e esquecida com descarte de um apanhado de fotografias ao mesmo tempo que ao ser encontrada por uma terceira pessoa, pode-se dar um novo sentido à essa vida perdida. É o que Eliane Brum faz em A vida que ninguém vê, descobrindo histórias descartadas e dando um novo significado a elas. O objetivo maior é mostrar que o ser humano é importante em qualquer grau, não porque é famoso e amante dos holofotes. O ser humano é igual pois tem sentimentos, precisa se sentir importante para alguém como faz o “Chorador” que chora a morte de quem não conhece, para que o morto seja igual a todos ao menos no dia da morte e assim também alguém um dia chore por ele, já que chorou por todos a vida inteira.
Esse é o papel do repórter. Observar, conversar e descobrir as mais fascinantes vidas que estão por aí no mundo, esquecidas por todos. Ricardo Kotscho, que realizou o posfácio da obra de Brum, diz em seu livro “A prática da Reportagem” que lugar de repórter não é em outro lugar senão na rua, pois mesmo sem uma pauta pronta ou nenhuma história aparente para contar, sempre pode-se encontrar as mais brilhantes matérias de sua carreira nos lugares mais inóspitos. Foi assim com Eliane Brum.
Tive a oportunidade de conhecer Eliane Brum em novembro do ano passado, durante o primeiro salão do Jornalista escritor, realizado no Memorial da América Latina. Dividindo o palco com Domingos Meireles e Caco Barcellos, a repórter assumiu sua timidez ao preferir ler sua palestra ao invés de falar. O interessante, é que foi dessa maneira, com simplicidade, humildade e um jeito aparentemente frágil, que ela conquistou naquele dia muitos fãs que desconheciam aquela jornalista singular. Ao ler “A vida que ninguém vê”, me afirmei como uma de suas fãs. A jornalista que faz de tudo para não ser vista, me mostrou que o mais importante da vida está nos esconderijos mais íntimos, dentro de cada um de nós.