sábado, 26 de abril de 2008

As remanências da década perdida


O que restou para os jovens da década que os viu nascer.

Há quase vinte anos do término de uma das décadas mais emblemáticas que o mundo viu, os anos 80 ainda são motivo de dúvidas e desconhecimento para a geração atual, que nasceu neste período.
Definida por muitos como a década perdida, os anos oitenta entraram para a história como uma página “sem muita história para contar e muita história para esquecer”. Segundo o historiador Flávio de Souza, 36, tal afirmação não é verdade.
Docente em Recife (PE), ele diz que o jovem que desconhece o período em que nasceu, acaba por desconhecer e subtrair um pedaço de sua própria história e conseqüentemente de sua vida.
A década de oitenta não foi perdida por muitos fatores. Após um período de dura repressão militar, iniciada com o golpe de 64, a abertura política e a anistia devolveram a esperança àqueles que viveram os anos de chumbo. Como declara a dona de casa Laíde Tereza Toschi, 48, a década de oitenta foi um alívio. Colegial na década de 70, Laíde diz que havia uma sensação terrível de medo na sala de aula devido à repressão militar. “Todos os nossos professores, envolvidos com a causa política, conversavam com a gente sobre a situação do país aos sussurros e de portas trancadas. Muitos professores foram punidos com a ditadura. A abertura em 85 nos trouxe devolta a liberdade e aí começamos a saber de verdade o que foi a barbárie militar”.
Ainda de acordo com Laíde, a mulher ganhou um novo papel na sociedade nos anos 80. Surgiram revistas femininas que tratavam de temáticas tais como liberdade, divórcio, e aborto, antes proibidos pela censura; além de maior liberdade sexual.
Porém com a liberdade sexual surge um novo inimigo, muito conhecido nos dias de hoje pelos jovens: a AIDS. Em 1982 é divulgado o primeiro caso de soro positivo no Brasil. Surgem então inúmeros casos da doença em artistas, ídolos da juventude da época, como alguns atores globais e cantores, como o ícone dos anos oitenta, Cazuza.

Sexo, drogas e Rock and roll
Com o lema “sexo drogas e rock and roll”, diz Laíde, muitos jovens passaram a viver vidas marginais. “O uso de drogas era abusivo, a prevenção no sexo era mínima, o que explicava os altos índices de HIV. A única parte boa desse lema era o rock que se solidificou com artistas que marcaram e se tornaram eternos, como os Titãs, Legião Urbana, Ultrage a Rigor, Blitz, IRA, Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Ratos de Porão, em uma cena mais alternativa, e Barão Vermelho” que modificaram o cenário da música brasileira, antes dominado pela MPB. A juventude “oitentista” era rebelde. Para a dona de casa, o nascimento do movimento punk, com os Sex Pistols fez essa rebeldia se intensificar. Esse é um mundo registrado em diversos livros destacando-se “feliz ano velho” de Marcelo Rubens Paiva, tradução do jovem de oitenta.
O movimento político, diz Flávio de Souza, foi intenso no período, já que acabara o milagre econômico e restara apenas o desemprego e a estagnação econômica. A revolta emerge, o apoio às causas sindicais, como a de um certo metalúrgico conhecido como “Lula”, se intensifica e a luta pela democracia e as “Diretas já” ganham força. Quem não ganhou foi Lula, as eleições presidenciais de 1989 para o “caçador de marajás”, Fernando Color de Melo; sabotado pela mídia e por ele mesmo.
Destaca ainda o historiador, que nos anos oitenta ocorreram fatos de extrema importância para o Brasil e para o mundo. Além da volta à democracia e dos exilados políticos da ditadura, é promulgada em 1988 a Constituição federal, outro sinal da liberdade instaurada. Foi nessa década que o mundo conheceu seu maior avanço tecnológico; aconteceu o Rock In Rio, a morte de Cazuza e Raul Seixas, a consagração de Ayrton Senna, surgiram os neonazistas conhecidos por Skinheads; intensificou-se a migração nordestina para o sudeste na luta contra a fome e o desemprego; ocorreu o acidente nuclear de Chernobil, o surgimento do MST, a Guerra das Malvinas, Guerra do Irã contra o Iraque, o início do fenômeno Globalização, os Tigres Asiáticos e a queda do Muro de Berlim que pôs fim à Guerra Fria entre EUA e URSS.
Reflexos na atualidade
Como se vê, a década de oitenta foi fundamental para a sociedade em que vivemos hoje. A política, os costumes e principalmente a música sobrevivem na juventude atual que venera os sucessos das bandas de oitenta, sem realizar uma reflexão das letras de Renato Russo, por exemplo, que demonstram todo um grito de liberdade da juventude de outrora.
Dedicados em reunir toda uma década em um único livro, os escritores Luiz André Alzer e Mariana Claudino publicaram em 2004 o “Almanaque dos anos 80” uma reunião de dados que fizeram parte da vida de uma geração considerada perdida, e que há muito, pedia reconhecimento. Essa coletânea reúne desde os brinquedos da época, como o famoso Genius e o boneco Falcon, até os filmes inesquecíveis como “De volta para o futuro” e “Dirty Dance” e séries famosas como “Dalas”, “Anos Incríveis” e “As Panteras”.
Amante dessas séries, filmes e brinquedos e fã incondicional da banda “Velhas Virgens”, sucesso da década de oitenta, o estudante de engenharia civil Daniel Cervatos, 23, diz que por ter nascido nessa década sente-se na obrigação de estar de alguma forma ligado a esse tempo. “Faz parte da minha história, foi a época da juventude dos meus pais, e tudo o que rolou, continuou a existir nos anos 90. Eu brincava muito com o Genius, assistia muito o Chaves e minha irmã era louca pelos Ursinhos Carinhosos e pela Xuxa. Sempre ouvi Titãs, Ultrage, Legião e Cazuza. E são coisas que não morreram, estão aí até hoje. O pessoal da minha idade não se preocupa com a história, estão muito presos ao presente e ao futuro e não se dão conta de que tudo o que desfrutam hoje é resultado da luta das gerações passadas”. Cervatos diz que seus pais são nostálgicos puros, especialmente sua mãe que não enjoa de ouvir o velho vinil do álbum “Thriller” de Michael Jackson. Por isso os levou há alguns meses à uma casa noturna em São Paulo e que depois passou a freqüentar, pois descobriu um pedaço de sua vida desconhecido e perdido em algum lugar da história. A “Trash 80”, localizada no centro da cidade é dedicada exclusivamente ao cenário e a musicalidade dos anos oitenta. De quinta à sábado aquele pequeno pedaço do centro volta ao passado, com um clima trash e músicas pop, rock, infantis e todos os hits classificados por eles como “cafonas”.
Cafonas ou não, essas pequenas remanências não deixam essa década tão importante e cheia de histórias pra contar, morrer. E dessa forma, continuam mostrando aos jovens, que os anos 80 não foram a década perdida, mas uma década sedenta por ser encontrada.